A palestra recente de um senhor chamado André Abdelnor, canal Centro Dom Bosco, oferece de modo significativo e proveitoso, mas não lisonjeiro, o repertório mais ou menos completo das fantasias e superstições circulantes contra o perenialismo. O senhor Abdelnor deu a cara a tapa, e apresentou ao público de modo indisfarçavelmente indecente a sua falta de preparo, isto é, o seu esnobismo grosseiro, incluso do ponto de vista da exposição histórica e da história das discussões, a respeito do perenialismo.
Apenas certa gradual abordagem pode bem exaurir o lidar com os erros do Centro Dom Bosco, que em si mesmos ameaçam de modo, modesto que seja, a reputação da ortodoxia católica. Algumas preliminares considerações, entretanto, bastam para bem encaminhar o assunto no lidar subsequente consigo.
O primeiro ponto é que a palestra do Sr. Abdelnor careceu de uma preocupação significativa com estabelecer a definição dos termos usados. Eu ficaria pálido e chocado se descobrisse que o Sr. Abdelnor leu uma página que seja de Ortega y Gasset. Mesmo do ponto de vista do método filosófico no seu sentido relativamente ordinário ou paralelo à religião (por isso infrareligioso), o palestrante não está à altura do desafio a que se lançou (de criticar o perenialismo). A sua despreocupação com definir termos fez que ele em aparência atribuísse a qualidade de “tese perenialista” a proposições que ele mesmo identificou como peculiares a Schuon, não Guénon (o fundador da escola perenialista). A insuficiente familiaridade do Sr. Abdelnor com a obra guenoniana fez que alguma opinião que atribuiu a Schuon sobre a “inferioridade do Filho em relação ao Pai” sujasse o perenialismo enquanto tal, quando o livro O Simbolismo da Cruz estabelece de modo suficiente, no capítulo sobre o simbolismo da sarça ardente, a equivalência estrita entre os três termos associáveis ao princípio divino. Isso decorre da dificuldade mesma em definir o perenialismo.
Essa dificuldade decorre, em parte, do fato de que a linguagem própria do perenialismo é o simbolismo sacro, cujas propriedades são diferentes das propriedades da linguagem ordinária, um assunto que o Sr. Abdelnor parece ignorar de todo; tampouco pode ele atinar para o fato de a linguagem do simbolismo só poder ser articulada por definições (isto é, por um curso dialético) desde um artifício literário inventado pelo René Guénon; o qual criou escola precisamente ao comunicar um caráter clássico à sua linguagem na medida em que articulou a linguagem acadêmica profana e a linguagem sapiencial e obscura do simbolismo sacro. A desatenção para com esse fato fez que o Sr. Abdelnor tratasse a literatura guenoniana não como uma linguagem sui generis e que deve ser entendida nos próprios termos para se afigurar inteligível na sua intenção legítima, e sim como uma linguagem ordinária como qualquer outra. Essa inadvertência levou necessariamente a certas confusões a respeito das quais o palestrante parece não ter atinado o sentido, por exemplo ao propôr que Guénon iniciou uma escola; de um lado; e é um mero repetidor da doutrina gnóstica, de outro. Um outro exemplo foi insistir que o guenonismo propõe um ponto de vista emanacionista, quando essa abordagem é profundamente desencaminhadora (à luz das qualificações explícitas do livro O Simbolismo da Cruz).
A dificuldade com atinar com a definição dos termos que pretende articular trai a incapacidade mesma de articular o que quer que seja; e o curso degenerativo que isso supõe, como oposto ao curso filosófico (que é a busca mesma da definição), guarda certa correspondência com a unidade quantitativa contrastada com a unidade qualitativa, ou a impessoalidade pejorativa contrastada com a impessoalidade em sentido elevado. É essa mesma degeneração o que caracterizou as seitas gnósticas primevas, que se desviaram da doutrina cristã. O Sr. Abdelnor ignora que ele seja uma legítima ilustração da exaustão qualitativa que René Guénon explicou que caracteriza o mundo moderno.
Essa indistinção entre o polo qualitativo e quantitativo, essa ambiguidade pejorativa na distinção entre esses dois polos, corresponde perfeitamente à indistinção entre o plano principial e o plano contingente que caracteriza o ponto de vista calvinista a respeito da justificação (o qual calvinismo pode se assemelhar ao tomismo a esse respeito, por causa de certa continuidade estereotípica). Essa mesma indistinção entre o principial e o contingente é também o teor aparente das teses de Meister Eckhart, condenadas por João XXII na bula In Agro Dominico (27 de março de 1329); o que tem valor na discussão do perenialismo na medida em que o professor alemão tem certo prestígio na literatura perenialista.
A inconciliação entre o domínio principial e o domínio contingente guarda correspondência com a inconciliação entre espírito e mundo sensível, inconciliação que é combatida ou dissipada pelo domínio psíquico. Meister Eckhart, na esteira disso, parece ter sido o produto de um mundo no qual a conciliação ou intermediação iniciático-psíquica (que é associável àquele que exerce o ofício de “guardião da terra santa”) se havia exaurido. E ocorre que a pregação de Eckhart surgiu precisamente pouco depois da extinção da Ordem Templária, que cumpria a supramencionada função intermediadora (Jacques de Molay morreu a 1314 A.D., quinze anos antes da bula de João XXII).
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