Estudo religioso – notas diversas

Dentre as observações que parecem pertinentes, no estudo do nicolaísmo e desde o texto anterior, está que a narrativa bíblica sobre Balaão (que se pode argumentar se enquadraria como um nicolaíta); é apresentada de modo extraordinariamente críptico e sutil, isso incluindo o motif potencial de ele e Balac serem a mesma pessoa narrativamente tratados como separados [conforme explicado no texto anterior]; não só porque a comunicação enigmática bem se adequa ao objeto enquanto enigmático; mas porque o ser apresentada a narrativa de modo críptico protege o testemunho do leitor contra o escândalo e paradoxo encerrados pelo nicolaísmo, impedindo que o leitor se escandalize. Que os eventos narrados são escandalizantes é suficientemente indicado pelo efeito imediato que a benção de Balaão sobre os hebreus tem sobre os hebreus, os corrompendo.

Como se trata de que o período dos Três Dias de Trevas é um se acirrar do nicolaísmo e o seu curso religioso ou infra-religioso próprio, consequentemente os simbólicos três casais bíblicos previamente discutidos têm de apresentar características próprias do nicolaísmo sob o aspecto de ele não poder ser mirado diretamente, isto é, nele a dicotomia entre autoridade espiritual e poder temporal, entre entendimento e prática, não pode ser mirada diretamente, para não ocasionar escândalo; porque o paradoxo encerrado na dicotomia é apenas uma imagem ou sinal de um fundo subjacente esclarecedor, cuja superfície é desencaminhadora.

Por isso os três casais bíblicos em questão são crescentemente relativos a cada um do casal serem próximos, significando que o contato com o nicolaísmo requer por meio de um testemunho crescente uma espécie de recuo inicial. Em outras palavras, os casais sendo Cornélio e Tabita, São Tomé e Santa Maria Madalena, Virgem Maria e São José; Cornélio e Tabita são dos três os mais apartados narrativamente, embora estejam próximos; São Tomé e Santa Maria Madalena têm uma proximidade mais acirrada, por causa do número de passagens diferentes que os sugerem próximos ser grande, e por causa de linhas narrativas subjacentes em que a discussão de um e outro se prolonga num e outro, sem contudo a conexão entre eles ser estritamente explícita e fácil; por fim a Virgem Maria e São José têm a sua proximidade indicada de modo máximo e explícito, em relação aos outros dois. Entretanto, mesmo no último casal, apesar de ser sugerida a proximidade, ela é no entanto narrativamente tensional, porque São José teve a intenção de se divorciar ou abandonar a virgem antes de receber a mensagem de um anjo, porque ela estava grávida.

A crescente proximidade de um casal para o seguinte, cada casal simbolizando um Dia de Trevas, ou a renovação subjacente à destruição desses dias, sugere que esse período cria uma janela de tempo ao fim da qual vai se esgotando e alfim se esgota de todo a possibilidade de não mirar diretamente para a escandalosa dicotomia nicolaíta (a dicotomia e inconciliação entre entendimento e prática); exceto que para aqueles que tiverem dado ouvidos ao Filho do Homem, o líder da Cristandade profetizado, esse mirar da dicotomia ao fim do período não será escandaloso, porque a instrução com que ele terá selado os fiéis durante o período vai os proteger do escândalo próprio do nicolaísmo, e revela em vez do escândalo a plenitude da revelação, conforme parece sugerido pelo anjo de Apocalipse capítulo 10.

Um outro ponto pertinente no estudo do nicolaísmo é que ele, na sua dicotomia, diz respeito ao dogma e à percepção do dogma. Em um dos seus sermões, significativamente, Santo Agostinho observa que as escrituras às vezes parecem se referir ou a um ou a outro, ao dogma aqui, à moral ali, como se as duas coisas não fossem simultâneas e subjacentemente unas; e nisso Santo Agostinho instrui a audiência a entender que quando uma é mencionada, se quer dizer a outra também. Ele não se pergunta, entretanto, porque as escrituras fazem isso. O motivo é não expor as pessoas à dicotomia escandalizante de entendimento e prática (nicolaísmo).

O dogma é uma fórmula de superfície com um fundo de mistério, e a sua implicação moral e disciplinar nem sempre é evidente, portanto, porque ao oferecer uma informação, o dogma (exigindo fé no que não é visto) sonega certa outra informação como um mecanismo de defesa do fiel contra o nicolaísmo.

Pela informação que foi descrita em texto anterior, o Primeiro Dia de Trevas é mais uma empresa intelectual, uma familiarização com conceitos, em detrimento de uma familiarização com uma prática (embora suponha uma prática subjacente correlata); e isso é consistente com a necessidade de evitar quanto possível o risco do escândalo nicolaíta; é por meio do comunicar um conhecimento, em detrimento de uma prática (exceto uma subjacente e discreta), que o testemunho direto do que é escandalizante é evitado.

O Segundo Dia de Trevas, de outro lado, se associaria a sobretudo uma prática, em detrimento de um conhecimento (senão um subjacente ou discreto). Isso é visto em que o Segundo Ai de Apocalipse capítulo 9, correspondente ao Segundo Dia de Trevas, é um período de reforma moral daqueles que se deixam reformar, e é um período de confrontos, e mútuos ataques em um sentido religioso, e um choque secular entre as Duas Testemunhas e diversos adversários. Se trata, segundo as sugestões do Venerável Holzhauser, de um período de transformações seculares. Um dos sinais simbólicos disso é que 1) no segundo ai se destaca a punição do fogo (o fogo se associa ao nobre e à atuação secular deste), e os cavaleiros agressores do segundo ai têm a aparência evocativa do leão (um símbolo de poder secular); 2) a mensuração do templo, durante o segundo ai, é contrastada como a atuação mais externa das Duas Testemunhas, de modo que a mensuração correspondente à concepção do templo/religião cede espaço narrativo, e portanto se torna mais subjacente de modo correspondente, no meio da proeminência de uma atuação secular no centro da arena pública.

Um dos sinais de que o Primeiro Dia de Trevas supõe um dificuldade mais intelectual do que prática, é que é dito que as pessoas atormentadas por carecer do sinal de Deus na fronte, vão buscar a morte e não vão encontrá-la, vão desejar morrer e a morte vai fugir delas. Essas pessoas, com o carecer do sinal de Deus na fronte, parece que carecem de algum conhecimento (porque a fronte e o seu sinal respectivo sugerem o entendimento), consequentemente, o tormento imposto a elas é uma punição e tentativa remediação do carecer desse conhecimento. Essas pessoas são levadas pela compunção a reconhecer a própria corrupção correlata com a própria ignorância. Entretanto, no mesmo capítulo, a despeito da familiarização dolorosa com essas coisas, muitos terminam por não se reformar ou se emendar das próprias faltas por meio de penitência, como é indicado nos versos 20 e 21 do mesmo capítulo. Assim, às pessoas é imposto um conhecimento doloroso punitivo, em detrimento de se oferecer uma reforma moral e disciplinar igualmente primária ou imediata. Consequentemente, o que não fazem penitência e não se reformaram dos próprios maus atos, são parte dos mesmos que reconheceram de modo doloroso a própria culpa. Consequentemente, são nicolaítas, porque no nicolaísmo há uma silmultaneidade não conciliada entre entendimento e prática, simultaneidade tornada tanto mais caracteristicamente nicolaíta quanto mais a exposição a essa simultaneidade é o efeito do desvelar um segredo de um modo escandalizante e paradoxalmente desencaminhador.

As pessoas que não fazem penitência mas reconhecem o próprio erro, consequentemente, são os habitantes da terra (ou parte deles) que o texto bíblico diz foram atormentados pela pregação das Duas Testemunhas. O se regozijar dessas pessoas, a despeito de terem a capacidade de reconhecer a própria falta [quando menos do primeiro ai até a culminação do segundo ai], quando da morte espiritual das Duas Testemunhas, parece ser a sugestão de que no curso de desenvolvimentos do Segundo Dia de Trevas as faltas delas vão se tornar sutis de modo comparável a antes do primeiro ai, o suficiente para parecer que em adição a não terem de fazer penitência, também não têm de reconhecer a própria falta. Esse seria o momento máximo do eclipse.

Com base em algumas dessas noções é possível reexaminar alguns dos temas anteriormente tratados, como no texto Notas diversas sobre a chave do abismo – o motif de três casais.

Há uma correspondência entre o primeiro enigma no girar a chave do abismo, o primeiro sonho desde o texto de Comentário aos Segredos de La Salette e Fátima; e o Primeiro Dia de Trevas.

No primeiro sonho eu procuro me dirigir como orador diante de um homem que disputa com os Dimond/os beneditinos de Rochester, em favor deles; se estando em um recinto não claramente público ou privado; e o homem opositor deles é Michael Lofton; e o Irmão Michael Dimond interrompe o meu discurso pretensamente em vantagem e bem fundamentado (tal significado pela minha alegada em gestos confiança e a cadeira onde eu me sento). ao me interromper o monge me tira a consciência, em seguida eu acordo não mais em uma cadeira, mas deitado em uma cama, não mais confiante e sim perplexo e abalado pelo meu ter sido exorcizado de um demônio pelas mãos do beneditino, o qual me beija na fronte; e o meu nariz está avermelhado e inchado de modo cômico. Em seguida o interior do beneditino, Michael Dimond, brilha como o sol, e um mar bravio se confronta de modo dramático com uma imagem condensada de toda grande cidade. Assim, o mar corresponde ao mal pelo qual eu tinha passado, e as cidades centrais ao interior luminoso do monge. O nariz inflado e vermelho conota uma percepção falhada e arrogância que no entanto não chegam a desembocar em um final trágico.

Há muito o que descompactar nesse sonho. Em primeiro lugar, o recinto não claramente público ou privado inicial é uma alusão à indistinção perigosa, no contexto do nicolaísmo, entre o externo e o interno, entre Autoridade Espiritual e Poder Temporal. Essa indistinção também é uma alusão ao fato de que se trata de um ambiente controlado, e uma simulação propositada na qual os beneditinos, que estão ambos presentes (embora Peter Dimond esteja não claro no cenário ou visualmente identificado) como que tomam a ocasião para examinar e julgar a mim sem parecer que o fazem. Por isso Michael Lofton, no sonho, pode bem ser um disfarce do Irmão Peter Dimond. As palavras que me fazem perder a consciência e acordar na cama, no escuro, correspondem a um endereçamento sacro e exorcizador que faz ver a absurdidade de uma abordagem nicolaíta (supondo a sobreposição de bem e mal, entendimento e prática, não uma na superfície, a outra subjacente) no meio de um eclipse nicolaíta em curso. Em outras palavras, é preciso confiar no jogo da não simultaneidade de entender e se fazer entender, como quando no meio de um eclipse solar não é possível mirar diretamente a lua no seu curso, se a tem de ver “pela metade”, seja a sombra da lua na terra com a respectiva luz sobre a terra lateralmente, seja a sua filtração pelos óculos escuros, ou uma coisa ou outra, mas não as duas. Ao desejar captar os dois aspectos do eclipse simultaneamente, se danifica a visão e se inflige um mal a si mesmo.

Assim, o sonho parece indicar que os beneditinos de Rochester se deram conta da necessidade de apartar ou distanciar de modo calculado (como em um ambiente calculado) o entender e o se fazer entender, o captar a verdade de algo e o endereçar outrem a respeito de algo; e eles perceberam que é loucura supor a simultaneidade das duas coisas. Há um hiato entre entendimento e prática. O acordar exorcizado sugere precisamente isso, porque eu acordei em um quarto recôndito, não público (assim ficando para trás a simultaneidade ou indistinção entre o público e privado do recinto), porque o quarto se associa ao interior recôndito e luminoso do Irmão Michael Dimond. O escuro do quarto contrastado com a luz corresponde ao Irmão Peter Dimond, que não aparecia antes (tampouco depois, embora tivesse sido identificado de algum modo como presente), porque é o contraste e a distinção entre entendimento e prática, a despeito de e contando com a sua unidade subjacente e mútua corroboração, é esses contraste e distinção que potencializam a luz de modo decisivo e curativo. Assim o mar bravio corresponde ao escuro do quarto, porque a maré corresponde ao eclipse, enquanto a cidade se associa à luz e ao central, como o sol. O Irmão Michael Dimond é a Cidade de todas as Cidades, o Irmão Peter Dimond é o mar bravio que se bate em encontro à cidade, e a sua aparente confrontação tem um efeito sacro curativo.

Assim, para lidar com o paradoxo nicolaíta, e a aparente inconciliação dele entre dois lados de uma dicotomia, o fiel deve opor entendimento e prática, e ao mesmo tempo subjacentemente conciliar entendimento e prática. Quem fizer isso parecerá sem manifesta vantagem a princípio, mas no fundo ou momento seguinte, terá a sua vantagem manifesta. Assim, no Primeiro Dia de Escuridão, expor os homens a um entendimento, em detrimento de dar a eles toda gratificação necessária para a sua imediata purificação, será um tormento do entendimento em detrimento da purificação (representada pela penitência), mas esse contraste tanto mais fortemente dará ocasião ao reconhecimento da necessidade da penitência. O contraste e a oposição entre os polos da dicotomia gera uma conciliação subjacente.

O primeiro enigma foi “Um dos irmãos está disposto a receber sua revelação/receberia a revelação, o outro não. Qual irmão é qual?” Como visto, cada irmão opera por oposição, contraste e distinção dentro de um contexto de subjacente corroboração um em relação ao outro. Consequentemente a oposição dos irmãos a respeito do receber ou não a revelação é uma distinção que potencializa o recebimento da revelação. Em certo sentido, portanto, todos os irmãos estão dispostos a receber a revelação, mas o fazem de modo diferente.

O primeiro enigma, correspondendo ao Primeiro Dia de Escuridão, fala a respeito de uma instrução, não uma prática. O segundo enigma fala sobre uma prática, em adição a uma instrução, e mais primária no próprio contexto que uma instrução: “O Filho do Homem ou futuro Pontífice, que será o Senhor das Duas Testemunhas, tem tanto as chaves da Arca do Testamento, pois há de ter o papel do papa, e ele é a própria Arca do Testamento. Como pode aquele que tem a chave da Arca e acesso ao seu conteúdo ser também a Arca? Responda isso e lhe será concedido transmitir o conhecimento que você deve transmitir aos irmãos.” O segundo enigma começa falando de alguém que há de receber o título de Filho do Homem, biblicamente associado a majestade, e fala ou destaca que esse pontífice será o Senhor das Duas Testemunhas, portanto a autoridade acima daqueles que atuam no centro da arena secular. Isso sugere uma função da vida de ação, como no contexto do enigma mais destacada do que uma instrução ou ensinamento.

Como sugerido, o sentido do segundo enigma corresponde ao segundo sonho e ao Segundo Dia de Escuridão. No segundo sonho eu tenho aludida de modo subjacente uma escola de ensino fundamental da juventude, e o tema do meu ser ficticiamente dado, em sonho, o cursar cursos da escola sem conseguir completar o ensino e receber o diploma. No sonho, depois dessa alusão a sonhos anteriores eu inicio o sonho me dirigindo a uma corporação buscando um emprego, e sou despedido; não tendo, depois, achado emprego em outro lugar eu volto à corporação primeiro, diante da sua fachada, e a um executivo dela dou mostras do meu próprio repertório de recursos como empregado potencial. O executivo, não dando importância, assevera que o meu conhecimento não vale nada por causa da ignorância de como transmitir o conhecimento, e ele me convence e impressiona. Ele segue para o edifício da corporação, e eu o sigo, ele saúda uma colega de trabalho, e o hall da empresa está em reparos, e de repente eu constato que a saudação da moça era uma saudação à Virgem Maria da parte de São Gabriel.

Nesse segundo sonho, a corporação contrasta com a escola de sonhos anteriores, mas é como que uma alusão velada à escola, porque entendimento e vida de ação possuem uma conexão subjacente. O ser contratado pela corporação, ou almejar ao mesmo, corresponde ao buscar de modo não bem-sucedido um diploma nos sonhos anteriores. O executivo da corporação tenta explicar que a falta de contratação se deve ao meu não ser capaz de transmitir conhecimento, a transmissão ideal sendo como a saudação angélica de São Gabriel, carregada da humildade de reconhecer um estado superior daquilo que segundo a convenção é inferior; na esteira do comentário tomista segundo o qual a bíblia contextualmente sugere que a saudação angélica supunha um reconhecimento em Gabriel da superioridade da virgem, a despeito de São Gabriel ser um anjo. O reconhecer que se está aquém e se é inferior, da busca contínua do diploma, corresponde a se dirigir e transmitir humildemente em se tornando digno de ser contratado. Assim, o Segundo Dia de Trevas é um chamado à penitência e disciplina prática, baseado na alusão a instrução prévia recebida, e um chamado a um zelo humilde em reconhecer a própria inferioridade para bem estar aquém de comunicar um testemunho encorajador. Isso corresponde ao zelo secular das Duas Testemunhas vestidas de pano de saco.

Quanto ao Segundo Enigma: “O Filho do Homem ou futuro Pontífice, que será o Senhor das Duas Testemunhas, tem tanto as chaves da Arca do Testamento, pois há de ter o papel do papa, e ele é a própria Arca do Testamento. Como pode aquele que tem a chave da Arca e acesso ao seu conteúdo ser também a Arca? Responda isso e lhe será concedido transmitir o conhecimento que você deve transmitir aos irmãos.” A própria estrutura do segundo enigma espelha a ordem “instrução seguida de ação” dos Dias de Trevas, porque é dito que após o entendimento do enigma é dado um meio de ação com que transmitir algo aos irmãos. Se o segundo enigma corresponde ao segundo sonho, o transmitir a mensagem aos irmãos corresponde ao papel de transmissor de mensagem do segundo sonho da parte de São Gabriel. Parece, portanto, que após aquele a quem é dado transmitir o que deve transmitir aos irmãos, após esse se dedicar de modo contínuo a buscar o “diploma”, mesmo sem o obter de modo definitivo (isso simbolizando o se reconhecer aquém da mensagem e do seu sentido subjacente) vai estar apto a com humildade bem ser recebido, no reconhecer a própria inferioridade como mensageiro.

A pergunta do segundo enigma é em retrospectiva uma clara alusão ao nicolaísmo como desafio existencial. O guardião da Arca e a Arca correspondem à vida de ação distinta da vida contemplativa. Como pode ser que a vida de ação e a vida contemplativa, distintas, sejam a mesma vida? A resposta é que elas são a mesma vida, em um sentido subjacente, porque a vida contemplativa guarda a vida de ação de modo subjacente. Consequentemente isso parece se aplicar ao paradoxo que eu previamente indiquei por um motivo contextual, a respeito de uma experiência pessoal, a saber, a inconciliação entre o matrimônio com uma muçulmana e a sua respectiva predição não confirmada, de um lado, e a vida contemplativa e a necessidade doutrinal (com a doutrina associada ao se tornar o vinagre vinho durante a Crucificação, conforme explicado alhures) de uma legitimidade como agente religioso, de outro. Esse paradoxo, que parece não ter uma solução, na verdade é uma amostra como que simbólica da aparência nociva e desencaminhadora do nicolaísmo, que trata como distinta em detrimento de subjacentemente una a dicotomia entre entendimento e vida prática. A resposta ao paradoxo, na esteira da resposta ao segundo enigma, portanto, é que, assim como a vida contemplativa guarda de modo subjacente a vida de ação, a necessidade [desde certas circunstâncias] de um matrimônio oposto à vida contemplativa é efetuada pela aceitação de superfície da vida contemplativa em detrimento da vida prática/matrimônio, e aceitação subjacente do matrimônio; de modo correspondente com como, no entender de Santo Agostinho, as escrituras falam distintamente de uma coisa ou outra, vida prática e entendimento, mas se deve entender a metade omitida como presente de modo subjacente, como um mistério religioso.

Esse paradoxo vital é tanto mais significativo porque se trata de que a pessoa que deu ocasião a ele é uma muçulmana, e o islamismo é uma religião nicolaíta, em que há uma distinta e notória separação entre os aspectos contemplativo e prático da religião, espelhando a separação das identidades de Ismael e Midiã (isto é, a mesma pessoa tratada como distinta, de acordo com certa tradição rabínica), o poço da mãe dele, mãe chamada Hagar/Cetura (o Poço de Zamzam), sendo uma espécie de relíquia histórica venerada por muçulmanos na cidade de Meca, a cidade mais importante no islamismo. A dupla identidade dos ancestrais do povo árabe muçulmano sugere a inconciliação nicolaíta (uma inconciliação no islamismo que é ademais abertamente admitida pelo influente sheikh islâmico, René Guénon, e.g. no livro Autoridade Espiritual e Poder Temporal), e a necessidade da discrição quanto à identidade apresentada como dupla, para evitar escândalo, como a discrição potencial (isto é, que se está especulando ocorreu) propiciada na narrativa bíblica de Balaão por meio do tratar ele como distinto de Balac.

Se entendimento e vida prática espelham porteiro e arca, e porteiro e arca desde o segundo enigma são subjacentemente unos, segue que a mulher muçulmana e a revelação doutrinal sobre o vinagre tornado vinho são subjacentemente conexos ou se espelham. Por isso, a doutrina do vinagre tornado vinho na Crucificação tem a qualidade de uma doutrina nicolaíta.

Eu faço a seguinte citação de texto anterior meu:

‘“A seguir está uma prova ou demonstração teológica que indica uma conclusão inesperada: que as escrituras sugerem que o vinagre dado a Jesus Cristo para beber durante Sua crucificação foi milagrosamente transformado em vinho.

‘“Para entender como o vinagre durante a Crucificação se transformou em vinho, é essencial explorar as conexões bíblicas significativas no relato do Evangelho. Ao estabelecer paralelos entre várias passagens, podemos descobrir um significado simbólico mais profundo sugerido por este momento crucial na história da Crucificação.

‘“Vamos explorar as conexões entre vários eventos nos Evangelhos e o tema do “consumação”. Em Mateus 24:2, a previsão da destruição do Templo carrega esse tema de consumação. Quando Jesus se refere à destruição do templo como algo semelhante à destruição de seu corpo em João 2:19, isso também se conecta à ideia de consumação. O cansaço que Jesus sente ao lidar com os cambistas no templo, conforme retratado em João capítulo 2, versículo 17, ressoa com o versículo do Antigo Testamento “O zelo da tua casa me devorará”. A conexão entre a destruição do Templo e o sofrimento do corpo de Jesus reflete o conceito de consumação. Essa conexão é reforçada pelo elo etimológico entre “consumir” ou “devorar” e a palavra “consumação” em Latim. Além disso, o encontro com os cambistas também se relaciona com a destruição do templo e a ideia de consumação. A declaração de Cristo aos cambistas de que ele ressuscitaria o Templo em três dias se ele fosse destruído fortalece ainda mais essa associação.

‘“Em Mateus 3:14-15, Cristo destaca a necessidade de seu batismo por João Batista para a “realização de toda justiça”, alinhando a consumação com a realização. O batismo torna-se associado à consumação, simbolizando uma morte e renovação subsequente, como ecoado em Romanos 6:4: “Pois fomos sepultados com ele pelo batismo à morte; para que, como Cristo ressuscitou dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos em novidade de vida.” Em Lucas 12:50, no contexto da Crucificação, Jesus menciona um batismo que ele está destinado a passar, enfatizando sua importância até que seja “realizado”. Esse termo “realizado” em grego é semelhante a “consumado”, ecoando suas palavras na Cruz em João 19:30: “Está consumado!”

‘”Em resumo, essas alusões ao Evangelho sobre a consumação sugerem não apenas a morte, mas também uma renovação profunda por meio de uma experiência semelhante ao batismo, enfatizando um tema de renascimento espiritual e realização. Na primeira epístola de João no Novo Testamento (1 João, capítulo 2), o Evangelista parece fazer uma distinção entre a “última hora” marcada pela emergência de muitos anticristos e o “começo” onde os ensinamentos do Evangelho começam a habitar nos discípulos. Essa sutil implicação sugere uma conexão entre a hora da destruição e um novo começo de vida, vinculando esse contraste à ideia de consumação.

‘“Essa comparação entre a última hora e o começo parece se alinhar com as Bodas de Caná, que introduzem um bom vinho no final da festa. Assim, se o contraste entre a última hora e o começo está relacionado com as mudanças no vinho das Bodas de Caná e com o conceito de consumação, é possível estabelecer um paralelo entre isso e a Crucificação, onde Jesus declara “Está consumado!”, indicando a conclusão de sua missão. Nas Bodas de Caná, Jesus diz a Maria, “A minha hora ainda não chegou” (João 2:4), e na Crucificação, João 19:27, também menciona a palavra “hora”. Além disso, Jesus se dirige a Maria como “mulher” tanto nas Bodas de Caná (João 2:4) quanto na Crucificação (João 19:26). Além disso, as Bodas de Caná fazem referência a potes de água usados em rituais de purificação judaicos (João 2:6), e a Crucificação alude ao uso de hissopo, comumente relacionado a rituais de purificação judaicos (João 19:29). Com o paralelo estabelecido entre as Bodas de Caná e a Crucificação, ambas conectadas ao conceito de “consumação”, a transformação miraculosa no casamento, onde o bom vinho substituiu inesperadamente o ruim, poderia espelhar outro possível milagre. Talvez o vinagre azedo oferecido a Jesus durante a Crucificação se transforme em bom vinho desde o começo, semelhante ao milagre das Bodas de Caná, onde a água foi transformada em vinho superior. O vinho ruim da última hora [vinagre] é tornado o vinho bom do começo.”

‘O fato de que foi dado a mim, e a ninguém mais, o entendimento desse mistério, deveria, entre outros, ser um sinal retórico formidável e suficiente, ao menos de modo provisório, do meu atuar isento em pretender revelar e discutir tudo quanto venho discutindo. Alguns indivíduos, uns dois, em essência sinalizaram reconhecer o quão extraordinária e convincente é essa demonstração, eu próprio não consigo ver nela nenhuma via para a criticar.

‘Um falso tradicionalista (isto é, um defensor mais conservador da Igreja Pós-Conciliar) criticou a demonstração a respeito do vinagre tornado vinho, dizendo que o paralelismo não funciona porque nas Bodas de Caná a troca foi de água por vinho, não vinagre por vinho, ao que eu não tive meios de replicar que eu deixei o paralelismo falar por si só. Deve-se lembrar que o paralelismo entre os dois momentos, o Casamento em Caná e a Crucificação, é suposto ser uma analogia, assim a água foi a matéria que deu origem ao bom vinho “desde o início”, substituindo o mau vinho da “última hora” no Casamento, o vinagre foi a matéria ou o mau vinho da última hora de forma mais direta. O simbolismo bíblico é frequentemente analógico, evitando assim uma coincidência estrita: por exemplo, não é necessário que a Virgem Maria seja um objeto inanimado como a Arca da Aliança do Antigo Testamento, para que ela receba, como recebeu, o título de “Arca da Nova Aliança”; da mesma forma, a maneira como o paralelismo entre o Casamento e a Crucificação é estabelecido não exige que a água, em vez do vinagre, seja transformada em vinho, desde que o tema subjacente de “consumação” e a renovação de qualidade batismal esteja sendo transmitido.’

Que essa revelação doutrinal tenha uma qualidade nicolaíta pode ser visto em que essa doutrina opõe o “vinho bom do início” (bem, essência, entendimento) ao “vinho mau da última hora” (mal, acidente e vida prática, o acidental sendo como que conversível com o domínio da prática). Essa revelação, portanto, impõe o paradoxo nicolaíta, por exemplo, quando sugere uma legitimidade como que secular, mas não imediatamente fornece os meios de ação com que impor essa autoridade, criando assim uma inconciliação aparente entre entendimento e vida prática ou disciplina.

Agora eu me dirijo à interpretação do terceiro “sonho”, conexo com o Terceiro Dia de Trevas, e com o Terceiro Enigma.

O terceiro sonho não é bem um sonho, mas a experiência de ser acertado por um raio, na verdade dois raios, como que conceituais e sobrenaturais, espelhando o duplo raio sobre o domo da Basílica de São Pedro a 11 de fevereiro de 2013 (conforme explicado no texto Comentário aos Segredos de La SAlette e Fátima). O primeiro raio era uma voz como trovão irada, carregada de sede de vingança: “(…) uma ideia como um trovão literal, e clara e resplandecente como um raio; carregada de uma dignidade gravemente ofendida; e uma dura e pavorosa sede de vingança: ‘Ai dos ‘bispos’ da prostituta!’, e logo mais, como um eco mais distante, ‘Seria melhor que eles não tivessem nascido!’ E com esse pensamento, inteiramente inesperado e abrupto, veio o terrível pressentimento de estranhos e pavorosos eventos de castigos afetando o mundo. As minhas pernas, cuja posição servil e vulgar significa o ‘ferro’, tremiam de medo, e os meus joelhos batiam um contra o outro sem que eu os pudesse frear com facilidade.” O segundo raio, na noite seguinte, disse “Ai dos ‘bispos’ da Virgem de Ferro!”, e dessa vez não os joelhos, mas as mãos tremeram e bateram uma contra a outra.

No contexto do nicolaísmo enquanto motif sacro em relação aos Dias de Trevas, enigmas, e sonhos ou visões; se pode entender que os dois raios se associam aos dois polos da dicotomia nicolaíta entre entendimento e ação. Isso é também conforme com o explicado no texto Notas diversas sobre a chave do abismo – o motif de três casais . Nesse texto a visão recebida alegadamente do pastorinho de Fátima Francisco assinala que ele é quem rezou para que fosse enviado o primeiro raio. A visão recebida alegadamente da pastorinha de Fátima Jacinta assinala que ela é quem rezou para que viesse o segundo raio. Ora, nesse contexto Francisco se associa à fé de que carece o profeta Abadom, e Jacinta se associa à compaixão de que carece o mesmo, sob o nome Apoliom. Isso é curioso porque o primeiro raio impôs de imediato, sem questionamentos, uma certeza, mas no dia seguinte a mensagem do raio (antes de vir o segundo raio) foi tomada como duvidosa; ao passo que o casal bíblico associável à compaixão nesse mesmo contexto tem como polo masculino São Tomé (que se associa à dúvida); enquanto o casal bíblico associável à fé nesse contexto tem como polo masculino o Centurião Cornélio (que se associa a uma extraordinária fé ou credulidade em um sentido não pejorativo).

O Terceiro Dia de Escuridão, portanto, em aparência se associa a um evento imediatamente convincente, mas sem tardar associado à dúvida. Isso é perfeitamente concorde com a tensão narrativa, no contexto do terceiro ai e sua consequências (Apocalipse capítulos 11 e 12) por causa da revelação e eleição do pontífice futuro. Há algum tipo de indecisão sobre se esse pontífice é eleito ou não, e Malachi Martin, leitor do Terceiro Segredo de Fátima, essencialmente sugeriu que Apocalipse capítulo 12 (prolongando o que foi dito pela Irmã Lúcia a respeito do Segredo na mesma esteira) fala sobre um futuro pontífice e um seu rival. Portanto a hesitação e tensão do terceiro Dia de Trevas é um drama nicolaíta, isto é, uma tensão entre o entendimento e a sua aplicação prática.

Esse ponto também é sugerido pelos dois raios se associarem a 1) prostituta e 2) Virgem de Ferro. A virgem de ferro, do francês vierge de fer, é uma instrumento de tortura. Uma vierge de fer é um instrumento de tortura composto por uma caixa de metal com espinhos afiados no interior. A vítima era colocada dentro da caixa e as portas eram fechadas, fazendo com que os espinhos penetrassem em seu corpo. A virgem de ferro na sua brutalidade parece se associar a uma falta de compaixão, que parece caracterizará aqueles que hão de rejeitar a eleição do futuro pontífice, e promoverão a sua rejeição. O raio prediz que esses indivíduos vão sofrer algum tipo extraordinário de punição. O primeiro raio, como oposto a se associar à compaixão, se associa à fé. Consequentemente a entidade religiosa descrita como “prostituta” é uma imagem de algum tipo de infidelidade, a saber, assim como uma prostituta apenas simula um pacto conjugal, os bispos dessa entidade corrupta vão como que simular a própria adesão inicial ao futuro pontífice.

Resta a pergunta a respeito de que modo o terceiro enigma (“O que é a Segunda Vinda de Jesus Cristo?”), se associa à dicotomia do nicolaísmo, se o faz de todo. Uma dicotomia que o enigma evoca é o fato de que a ideia de uma Segunda Vinda de Cristo é uma das ideias mais familiares e ordinárias do ethos religioso-cultural no Ocidente. Se pode argumentar, no entanto, que poucas noções altamente disseminadas como essa são tão pouco claras para as pessoas que a reconhecem. Alguns padres da Igreja, como São Irineu de Lyon e São Justino mártir, eram chiliastas, crentes em um milênio futuro de glória secular cristã extraordinária, no caso de Justino um milênio de um retorno de Cristo como rei sobre os cristãos hegemônicos (eu digo-o pela leitura dele, embora a minha familiaridade com esse aspecto do seu Diálogo com Trifão não seja muita). Segundo me lembro, se diz que São Jerônimo, no séc. IV notou que entre os cristãos da sua época não surgiu nenhum grande defensor da tradição chiliasta; de modo que por esse tipo de razão essa posição se tornou residual. A distância entre o reconhecimento secular da noção de Segunda Vinda e o entendimento do teor preciso e detalhado dessa noção, é uma distância tão enfática e distinta que se afigura um exemplo nicolaíta de distância entre entendimento e objeto com um sentido prático/familiar ou corriqueiro.

Assim como em outros exemplos do nicolaísmo causando escândalo pela visão simultânea do entendimento e da prática, a noção enquanto resíduo cultural da Segunda Vinda é mantida distante do entrar no mérito da questão de modo detalhado, sob pena de essas especulações gerarem uma espécie de escândalo sensacionalista a respeito da plausibilidade da fé cristã. Como os discípulos de Cristo em Marcos capítulo 6 foram descritos como de coração cego diante de milagres como a multiplicação dos pães, não conseguindo por choque entender o que se passava, e também em aparência no contexto do evento subsequente do andar sobre as águas; como esses discípulos no Terceiro Dia de Trevas, conforme o choque dos dois raios prenuncia, as pessoas vão ficar chocadas com quão direto será o contato com o sagrado e a sua gratificação. Isso também é concorde com declarações de Anna Maria Taigi a respeito do que se há de passar ao fim dos Três Dias de Trevas, em que um futuro pontífice alfim receberá a graça de realizar milagres.

Sobre Pedro Henrique de Lima

Pedro Henrique de Lima, residente em Belo Horizonte, Minas Gerais; cursou disciplinas de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais e outros cursos com notoriedade. Em seus estudos ele especializou-se em disciplinas da lógica. O autor-professor oferece o exame, desde várias disciplinas e perspectivas, de temas relevantes.
Esse post foi publicado em Uncategorized. Bookmark o link permanente.

Uma resposta para Estudo religioso – notas diversas

  1. Pingback: Da tempestade próxima | Notas Sobre Doutrina Católica

Deixe um comentário